A denúncia foi feita à 18ª Delegacia de Polícia Civil (Praça da Bandeira), no último domingo. Nela, o professor popular Ash Ashaninka da Silva acusa o Batalhão de Choque da Polícia Militar, na pessoa do policial conhecido pelo nome no uniforme como cabo Guedes, do grupamento de policiamento em estádios, de ter-se exaltado, agido agressivamente e de ter ofendido a ele e a outros índios e estudantes da Aldeia, de forma racista. O policial, visivelmente alterado, falando alto e com gestos ameaçadores, disse: “voltem para sua terra, aqui não é lugar de índio, lugar de índio é na Amazônia”. A denúncia, no entanto, não é só contra o policial. “Não é contra a pessoa dele, mas também não tem arrego! Não vamos retroceder!”, afirma Ash.
A Aldeia também está buscando mecanismos internacionais de denúncia contra o Estado e contra empresas do Consórcio Maracanã, como a Odebrecht, por racismo institucionalizado como violação dos direitos civis, quer requer tutela imediata de direitos, em situações de violência contra crianças e anciãos, inclusive, detenção e prisão arbitrária, sem proteção penal, o devido processo legal, violação do direito à identidade e a propriedade artesanal dos índios da aldeia, entre outros.
“Vamos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, à ONU e à UNESCO, para denunciarmos isto. Já vimos sofrendo diversas formas de racismo. O que este policial nos disse é apenas um reflexo de como o Estado e as elites dominantes nos tratam. De forma idealizada e preconceituosa. “Lugar de índio é em onde ele quiser estar. Somos livres para estarmos em qualquer lugar, lugar de índio é todo o lugar, não tem fronteiras…”, afirma Ash, liderança do povo Ashaninka e da Aldeia Maracanã.
Ash e um grupo de índios e de estudantes da Aldeia-Universidade Maraká’ànà estavam voltando para a Aldeia, quando ouviram estampidos de tiros vindo em sua direção e correram para buscar abrigo, sem entender o que estava acontecendo. Logo souberam que os policiais militares dispersaram, a tiros de balas de borracha, um grupo de 20 torcedores vascaínos que se aproximavam do estádio pela Av. Castelo Branco (Radial Oeste)vindos de São Cristóvão, no mesmo sentido em que o grupo indígena, e a eles se somavam três mulheres e uma criança que também iam, neste sentido, no mesmo grupo, ao estádio. Ash foi até os policiais para se queixar: “estamos em aula, na Aldeia recebemos estudantes, crianças, anciãos. A ação da polícia foi imprudente. Fui até eles para alertá-los, mas fui recebido de forma arrogante por um deles. Será que eles atirariam desta forma em um colégio da zona sul?”, questionou. Neste dia, a Aldeia recebeu um grupo de cerca de 100 estudantes e professores, de um colégio público estadual.
Ash é de uma etnia, os Ashaninkas, que habita a região da fronteira amazônica entre o Acre e o Peru. Ele, no entanto, mora na cidade do Rio de Janeiro, como mais de 20 mil índios que também moram no meio urbano. Segundo o IBGE, cerca de 54% da população indígena brasileira mora nas cidades.
“Não fui só eu e meus companheiros da Aldeia que fomos ofendidos, mas os povos indígenas como um todo. Ganhei este cocar, que sempre uso, de um pajé Kalapalo, sou uma espécie de cônsul deste povo Kalapalo, nossa Aldeia é uma Embaixada dos povos indígenas no RJ. Não posso me calar diante desta agressão. Não falo só por mim”.
Para ele, a presença dos índios em meio urbano se deve às invasões de terras indígenas por mineradoras, hidrelétricas, para a indústria do alumínio, pelo agronegócio. “Então precisamos vir para as cidades, para defendermos nossas aldeias, pois as cidades são centros de decisão política e econômica”,complementa.
Racismo Ambiental e Institucionalizado
“Estamos fazendo um Manifesto e um Convite, que vamos protocolar nos consulados e órgãos da ONU, OIT, Unesco, para a organização de uma Audiência Pública com a presença da sociedade civil, dos direitos humanos locais e internacionais, em que vamos relembrar a história de resistência da Aldeia e dela nas ruas, com os demais movimentos sociais. Vamos tratar das sucessivas e cotidianas violações de direitos, e do retrocesso social que esta história reapresenta. Estamos convidando os movimentos que estão na luta com a Aldeia para construirmos esta Audiência. Isto já estava encaminhado. O fato, o racismo, que ocorreu com o grande guerreiro Ash, só reforça a necessidade desta estratégia de auto-defesa e auto-afirmação indígena e popular, nas contradições entre o direito e a ação do Estado e na ação direta. Como em Chiapas, a luta não é uma opção pessoal, mas um imperativo re-existencial, na dialética da realidade de uma aldeia urbana. A necessidade da luta nos estertores deste sistema exterminador ou insurge ou é um viver indignado, resignado, no trono de um apartamento…”, conclama o Cacique Korubo – Kaxalpynia Runayke Yagua.
Na 18ª DP, Dalila Gonçalves, formada em Educação, mestranda pela Rural (UFRRJ), estava na Aldeia e presenciou o fato. “Senti me ofendida, neste momento ressurgiu forte minha ancestralidade, cabocla, Kayngang… A pesquisa participante é mais do que uma opção, é um requisito quando você presencia situações de violência institucionalizada, principalmente. Você sabe que o seu silêncio medroso implica em uma ameaça permanente, uma faca sobre a cabeça daqueles que estão diretamente e subjetivamente implicados no conflito concreto. Se para eles esta não é uma opção digna, nem para mim é.”, reflete: “Eu também fui vítima deste racismo! Todas que ali estávamos”…, diz Dalila, a cabocla Kay’gang.
“Calar-se significa admitir e permitir que a violência se perpetue; é permitir que ‘façam xixi’ (retruca rindo) na nossa memória, na nossa história, nos nossos ancestrais”, complementa Mônica, reManaura Sol, Lima, do Fórum de Saúde, da Aldeia Maracanã, ainda segundo ela: “um gesto de descontrole e selvageria tipicamente machista, vejo Cabral em cada mijão, em cada ato de exceção contra a fantasia do ‘estado de direitos’”.
“O gesto, o comportamento reflete o estado. A história em cada gesto de massas, de torcedores promovidos à nova classe média, consumidora, otimista, avessa à crítica ao governo, às privatizações, que pode pagar uma fração de 250 reais pra ver um jogo de futebol, a mesma, em seus estratos mais altos, que está no poder, racista, machista e branca, mas com verniz de esquerda ou de ‘democracia’. Acham que podem tudo e manipulam o direito e o estado conforme seus interesses privados, seus acordos com a Fifa e com seus patrocinadores. Não têm a dignidade de rever seus atos, revogar suas imposições desenvolvimentistas assassinas, exterminadoras. (…) O gesto reflete o comportamento midiático típico do novo cidadão-consumidor feliz, da paz, otimista, conformado, das propagandas da Coca-Cola”, conclui e ensina a professora manaura.
“Não foi difícil de prever no corpo e na mente que um movimento de auto-afirmação indígena urbana como o que iniciamos no início da década passada seria também o espelho reflexivo do racismo, em suas múltiplas formas, como racismo institucionalizado.”, rememora o professor Urutao (José) Tenetehara (Guajajara) do Coletivo de Estudos Linguísticos da Aldeia-Universidade Maraká’ànà, professor e pesquisador da Língua Tupi, dos ancestrais Tupinambás ao zeng’eté (língua verdadeira) dos Tentehara. “É só só relembrar a história da resistência, principalmente nos últimos anos, que, se sempre foi presente, ganhou em poder ofensivo direto, em abuso da violência, com a conflagração dos imperativos dos megaeventos internacionais, da Fifa e de seus patrocinadores, com a conflagração de um direito de exceção, contra os defensores dos direitos humanos indígenas e ‘não-indígenas’”. Então, senta que lá vem história, uma histórica recente do racismo socioambiental contra povos vítimas de genocídios de guerras de conquista colonial-capitalista, até os dias atuais…
O último caso de racismo institucionalizado explícito, descarado, antes da retomada da Aldeia, no dia 5 de agosto, contra a ancestralidade reTupinambá Tamoio, indígena intercultural dos Maraká’ànàs, contra os que reivindicam não a herança como propriedade ancestral, mas a propriedade como bem imaterial, espiritual, como bem-comum ancestral (tamoio), iniciou no mesmo dia, praticamente, que a Aldeia foi removida à força, de forma violenta e arbitrária, através de processo meramente liminar, sem julgamento de mérito das ações na Justiça e, expressamente, pela resistência da ação na Justiça do Centro de Etnoconhecimento Caiuré – Cesac, representando a Aldeia, pela regularização fundiária do território como reserva indígena, dedicada à cultura, educação, religiosidade e à saúde indígena e popular, de usos e costumes tradicionais, pela revogação da venda ilegal do espaço ao Estado pelo governo federal.
Logo após esta remoção violenta da PM, operada por ordem do governo com mandado da Justiça, com ordem expressa pelo juízo de retirada ‘sem qualquer uso de violência’, as empreiteiras do Consórcio Maracanã liderado pela Odebrecht o transformaram em um de seus canteiros de obras. Todo o espaço requerido pela Aldeia, do antigo prédio, do seu entorno e dos prédios desativados do Laboratório Nacional Agropecuário (Lanagro, de pesquisa e certificação de alimentos), desativados. A área virou depósito de entulho de obras, foi terraplanado sobre vegetação nativa, de uso indígena; o solo fértil, de genipapo, de bambu, de plantas medicinais, virou pavimentação de pedra e pó de cimento, tornado árido. Não houve qualquer preocupação com a preservação deste patrimônio histórico, tardiamente tombado pelo Estado e pelo Município, cujo tombamento também ainda está em estudo pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Nacional. Um dos corrimões da escada de acesso principal do Museu, à época de Darcy Ribeiro, foi destruído.
O impacto sobre o patrimônio foi grande. A alteração do meio ambiente com a redução da área do entorno do prédio do antigo museu, e com a redução de sua área verde e exposição ao barulho dos automóveis, fez com que os pombos buscassem abrigo no interior do prédio, o que também vem comprometendo a sua conservação. A grande quantidade de pombos que fazem seus ninhos sobre o teto da Aldeia também é responsável pela aceleração da deterioração das madeiras que o recobrem. “Pior do que os pombos, foi a falta de manutenção do teto, com a retirada do toldo que o recobria e o protegia, um pouco mais, das chuvas, o pior vilão do processo de deterioração do prédio”, como atestou representante do Conselho Regional de Engenharia-CREA, em Audiência Pública na Aldeia.
Prevendo o descaso e o racismo, no dia seguinte à remoção do dia 22 de março, no sábado, a Aldeia ocupou o atual Museu do Índio da Funai (Fundação Nacional do Índio) e passou a noite lá. Foi retirada, em operação em que o Batalhão de Choque da PM fechou a Rua das Palmeiras, em Botafogo, durante todo o final da madrugada de sábado para domingo. Finalmente, por volta das 6h da manhã, com a presença de um Juiz e, finalmente, de um pedido ajuizado para a retirada do prédio, mediante a condução de todos os ocupantes para uma Audiência Pública na Justiça Federal sobre a Aldeia Maracanã. Nesta ocasião, após ouvir os indígenas pela primeira vez, em quase 7 anos da retomada do espaço definida pelo Congresso do Movimento Tamoio dos Povos Originários, em 2006, o Juiz decidiu fazer uma visita ao espaço que era do Lanagro, reivindicado pela Aldeia, e, antes da diligência declarou que, se houvesse condições para seu uso pela Aldeia, que o coletivo seria ali assentado, ainda que provisoriamente.
Mas, na diligência, nós descobrimos, os que estávamos na Audiência e demais, pela imprensa online, que o espaço já estava ocupado pelo Consórcio Maracanã, que o transformou em escritório do canteiro de obras, em menos de 24h. A ação cinematográfica do movimento da resistência indígena e popular foi, assim, malograda. O Juiz ainda chegou a refletir sobre a possibilidade do assentamento provisório no próprio Museu de Botafogo, mas retrocedeu em sua missão como autoridade da proteção constitucional dos direitos indígenas.
Depois da retomada, – com a força do povo nas ruas, que, nos dias 17 e 20 de Junho, invadiu a ALERJ e marchou com um milhão de pessoas na Av. Presidente Vargas da Candelária em direção ao Maracanã, em dia de jogo da Copa das Confederações (da Fifa), mas foi violentamente barrado em frente à Prefeitura (no final da Avenida, próximo a sua interligação com o bairro do Maracanã) pela PM, no que muitos chamam de ‘dias que ainda não acabaram’-, o jogo da disputa pelo imóvel ou pelo bem-comum requerido pela Aldeia Maraká’ànà mudou. A Secretaria Estadual de Cultura (SEC) entrou no jogo.
Antes, no entanto, o Estado já havia conseguido dividir o movimento indígena. Em um dos encontros do Grupo de Trabalho sobre Ciência, Arte e Cultura, promovido pela SEC, Tiuré Nascimento, liderança da etnia Potiguara, disse que foi desrespeitado pela própria secretária Adriana Rattes. Ele redigiu uma carta em que faz uma exposição de motivos para a sua retirada, junto com outros indígenas da resistência, destes GTs, renegando a legitimidade dos GTs para a apreciação do protagonismo indígena da resistência. Segundo ele: “o Estado sabe que estamos em um impasse, sobre a natureza da regularização fundiária, mas finge que tem um acordo nas mãos. Até as atas das reuniões é ‘resumida’ de forma a evitar a crítica e as diferenças de fundo, radicais, entre os projetos de centro de referência, de exposição, e o de universidade, auto-afirmativo e autogestionado, mas, principalmente, o impasse quanto à regularização fundiária”, disse, à época.
Este impasse, ressalte-se, é também uma questão de reconhecimento ou não (e é este o caso, inclusive como racismo institucionalizado), pelo Estado, da etnicidade indígena da Aldeia Maracanã. Em recente audiência na Justiça Federal, após a retomada, relembra o professor Urutao: “um Promotor público, em defesa do ‘Estado’, chamou nossa oca, nosso espaço de reunião, de aula, de troca de conhecimentos, chamou-a de ‘palhoça’, de forma depreciativa”.
No dia 22 de março, ‘sem violência’, como ordenou o Juiz, a Aldeia foi removida, ao vivo em cadeia nacional e internacional de rádio e TV, com direito a gás de pimenta sobre crianças de 3 anos de idade, coação física (o advogado da Aldeia, Arão da Providência, Tenetehara, foi algemado, jogado no asfalto, e teve sua cabeça pisoteada), bombas de ‘efeito moral’, arma ‘sônica’, entre outras de alta tecnologia de contenção psico-física de conflitos. O procedimento correto, legal, de notificação e prestação dos direitos sociais básicos aos retirados não foi atendido. Pior, os pertences dos aldeados urbanos foram levados e nunca mais foram revistos, nem foram restituídos de qualquer forma pelo Estado.
E, se no dia 22 de março, a remoção foi feita mediante mandado judicial de imissão na posse, no dia 12 de janeiro, deste mesmo ano, a PM também esteve na Aldeia, cumprindo ordens do governo para removê-la, ainda que sem ordem judicial, mas deu de frente, perplexa, à resistência disposta a não admitir sua remoção, diante dos olhos de mundo todo, antenados nas redes sociais. Neste dia, a resistência da Aldeia foi um dos três ‘assuntos’ mais difundidos nas redes. O governo recuou. Mas voltou no dia 22, desta vez, com um mandado, e com força supremacista (racista), contra o direito de resistência, sem o cumprimento do rito legal de reintegração de posse, para remover a Aldeia.
E, por tudo isto, segundo Ash: “cansamos de esperar pelo Estado, pela Funai, pela defensoria, pelo MPF, não vamos nos conformar em sermos renegados em nossa cultura, em nossa ancestralidade, pelos governos, nem por maiores que sejam as empresas transnacionais interessadas, as ameaças, vamos provocar o sistema internacional de direitos e a sociedade em escala planetária; contra esta ditadura capitalista, a Aldeia (R)existe!”.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Fernando Guarani Kaiowá Soares.